domingo, 26 de novembro de 2017

A grande pera
           
             
A época era de governos militares e Atos Institucionais. Nos grandes centros urbanos havia preocupação e desconfiança no ar, protestos, prisões e medo. Tanto era que até mesmo nós, crianças, percebíamos que tinha alguma coisa estranha acontecendo.
Na pequena Mondaí, onde não circulava um jornal local, onde era raro alguém possuir TV ou telefone e as informações passavam no “boca a boca”, vivia-se, quer me parecer, muito melhor e mais tranquilamente, sem as neuroses que hoje tanto nos afligem. A tal “qualidade de vida”.
Nesta cidade, onde nasci e estava agora de visita, meus avós maternos: Mário Silveira e Adônia – que atendia por Nita – eram donos de um terreno urbano de fazer inveja a qualquer lote popular de hoje em dia. Tinha bem uns cinquenta metros de frente por algumas centenas de metros de comprimento. Além da ampla residência em alvenaria, de frente para a atual Av. Porto Feliz, de um galpão de madeira onde funcionava o depósito, área-de-serviço e garagem, havia também uma casa de bombas que mandava água do poço para o uso doméstico. Esta construção ficava junto ao rio Capivara, que atravessava a propriedade dividindo-a em duas partes. Na segunda, que se atingia passando por uma caprichada ponte particular, havia um estábulo, pasto e algumas cabeças de gado. Vacas holandesas, mansas, que eram orgulho do meu avô.
O terreno em si continha parreiras, plantação de aipim (que lá era, e ainda é, denominada mandioca), cana-de-açúcar e abacaxis. Um pomar com pés de figo, limão, maçãs deliciosas e laranjeiras de várias qualidades. Também hortaliças, legumes, temperos, flores e chás para todos os fins.
Entre tantas árvores frutíferas, uma em especial chamava a minha atenção. Era uma pereira enorme (talvez nem tanto, pois quando se é criança tudo parece maior...) e carregada de frutos atraentes. Depois da devida autorização para colher uma daquelas peras, encaminhei-me ao local. O meu avô deixava encostado na parede do galpão, um bambu comprido – devia ter uns quatro ou cinco metros – munido na extremidade mais fina de um saco em forma de “coador”, daqueles antigos, de pano, que era usado para coletar a fruta desejada. Guloso, escolhi a maior e de difícil alcance; fiquei na ponta dos pés, estiquei-me, cutuquei a escolhida até ela se soltar, mas para minha surpresa a fruta não coube no saco e começou a cair, trancando inicialmente em alguns pequenos galhos, o que me deu tempo de raciocinar. Soltei o bambu e me preparei para aparar o objeto dos meus desejos já antevendo o quanto estaria apetitosa. Lembro até hoje aquela pera descendo, de galho em galho, em câmara lenta; descendo, descendo... até ficar tudo escuro!

A pancada que levei no olho direito deve ter sido violenta, pois com o impacto caí de costas no chão e ali fiquei por algum tempo – talvez desmaiado. Não gritei, não chorei, não disse um ai. Sabia que a culpa do “acidente” era minha.
Quando cheguei de volta a casa com o olho fechado e muito inchado, sentindo muita dor, foi um alvoroço; algumas pessoas achando graça, outras preocupadas. Após a constatação de que nada mais grave havia acontecido, perguntaram-me o que eu ia fazer. Respondi somente:

           - Vou comer a minha pera. Inteirinha!!

A minha cidade-natal naquela época