sábado, 4 de abril de 2020

Novos tempos

         
           
           Nesses dias de quarentena acontecem, às vezes, coisas realmente inéditas. Situações que até a pouco ninguém, em sã consciência, acreditaria possível ou sequer imaginável.
           Andamos todos desconfiados, mantendo uma distância de "segurança" das pessoas conhecidas ou não, dos amigos, dos parentes (é certo que alguns já tinham este cuidado - com os parentes - mas por outros motivos, pouco louváveis), dos maridos, das esposas e por aí afora.
         Agora, de sexta-feira à noite até a madrugada da segunda não mais se escutam sons de festas, rodas-de-samba ou bailões. Nos domingos não há churrascos nem gritos ou palavrões pós ingestão de cerveja, muita cerveja...
           Não há (ao menos na minha região) funcionários da Zona - não aquela da luz vermelha - transitando pra cima e pra baixo procurando motivos para multar nossos veículos estacionados em locais impróprios ou além do tempo permitido. Nem guardas de trânsito tenho encontrado. Sumiram todos, quase que por encanto.

           O mais incrível me aconteceu no último 1º de Abril (e não é piada). Após diversas tentativas infrutíferas para pagar o meu boleto do Imposto de Renda nos terminais de auto atendimento, consegui, finalmente, uma senha para resolver o meu problema no interior da agência bancária. Fiquei na fila, guardando distância segura dos demais "filantes" e, chegada a minha vez, adentrei ao recinto. O guarda, junto à porta giratória, cumprimentou-me simpático (?) e nem questionou o fato de eu estar disfarçado, usando máscara. Sorriu como se me reconhecesse, apesar dela. Isto me deixou intrigado. Senão, vejamos:
           Sou motociclista, sempre utilizando os acessórios recomendados, desde os meus vinte anos (agora na 3ª idade) e já fui barrado por usar, em dias frios, uma proteção de pescoço que me encobria o queixo. Já fui chamado a atenção por estar com o capacete no alto da cabeça. Já me olharam atravessado por entrar na agência usando as luvas de couro e me questionaram o fato de estar usando botas com proteção metálica (as chamadas biqueiras), pois interferem nos sensores de metal e agora entro mascarado no banco e ninguém liga? É o cúmulo...
           Ah! o Imposto de Renda? Deu tudo certo, paguei feliz da vida e ainda ficou a impressão de que eu é que não sabia (quem sabe?) usar o fatídico terminal, é claro!

 
  

terça-feira, 20 de novembro de 2018

A Casa do Poeta Lindolf Bell

Ney Santos


Por volta do ano de 1987, quando eu contava apenas três décadas de vida, conheci o artista plástico – escultor e pintor – Mano Alvim, o criador do monumento ao Contestado, erigido no município de Irani-SC. Ele viu meus trabalhos e, parece-me, gostou bastante, ao ponto de tentar dar-me uma “forcinha”. Haveria, nesta ocasião, um encontro literário com a presença, entre outros, do poeta Lindolf Bell e ele, Mano, desejava me apresentar ao grupo como um “novo poeta catarinense”. Tremi nas bases... O local do evento seria um restaurante em praia do leste da Ilha de Santa Catarina, que eu nem sabia ao certo como chegar lá. E aconteceria naquela noite! Para piorar tudo, no final da tarde começou a chover muito. Relâmpagos, trovões e água. Não fui ao tal encontro. Na semana seguinte recebi uma descompostura e sofri o, justo, afastamento do meu amigo, que não confiava mais em mim. Lamento até hoje, trinta anos depois, a minha atitude, a minha falta de coragem.
Tantos anos se passaram até que, em 2017, recebi convite para ocupar uma Cadeira na Academia Alcantarense de Letras – Acalle, de São Pedro de Alcântara, o primeiro núcleo de colonização germânica em Santa Catarina, fundado em 1829. Para minha alegria, entre os nomes que me foram apresentados como possíveis Patronos da Cadeira 07, constava o de Lindolf Bell. Não pestanejei e o escolhi, imediatamente! Uma forma de remediar um pouco aquela minha falha.

No último feriado, 15 de novembro de 2018 – dia da Proclamação da República – consegui ir até Timbó, terra natal de Lindolf, para uma visita à Casa do Poeta. Ali pude sentir um pouquinho a proximidade – apesar de estarmos em planos diferentes – do poeta catarinense de tanta expressão. Apreciei fotografias, roupas, móveis e utensílios diversos, a sua biblioteca e prêmios recebidos, enfim, senti-me algo participante do seu ambiente de vida e também de trabalho.
A recepção, extremamente simpática, da funcionária Joelma, que nos ciceroneou – a mim, minha esposa e meus pais – em certos momentos causou-me emoção tamanha de quase levar-me às lágrimas.
Saí de lá mais leve e com a certeza – ainda maior – de que estou no caminho que devo seguir e que, de maneira às vezes meio torta, estou trilhando.



 A Casa do Poeta

 Fotos do Poeta

O jardim do Poeta


domingo, 27 de maio de 2018

Do contra (2016)

Se o voto não fosse obrigatório
"obrigado é pau de arrasto"
Votaria:
Por pirraça, por prazer
Malvadeza
Ou para demonstrar
Responsabilidade

Para buscar por mudanças
Destas tantas
Que anseia a sociedade
E não sendo obrigado a tal
Votar já não me pareceria
Tão mal!

domingo, 26 de novembro de 2017

A grande pera
           
             
A época era de governos militares e Atos Institucionais. Nos grandes centros urbanos havia preocupação e desconfiança no ar, protestos, prisões e medo. Tanto era que até mesmo nós, crianças, percebíamos que tinha alguma coisa estranha acontecendo.
Na pequena Mondaí, onde não circulava um jornal local, onde era raro alguém possuir TV ou telefone e as informações passavam no “boca a boca”, vivia-se, quer me parecer, muito melhor e mais tranquilamente, sem as neuroses que hoje tanto nos afligem. A tal “qualidade de vida”.
Nesta cidade, onde nasci e estava agora de visita, meus avós maternos: Mário Silveira e Adônia – que atendia por Nita – eram donos de um terreno urbano de fazer inveja a qualquer lote popular de hoje em dia. Tinha bem uns cinquenta metros de frente por algumas centenas de metros de comprimento. Além da ampla residência em alvenaria, de frente para a atual Av. Porto Feliz, de um galpão de madeira onde funcionava o depósito, área-de-serviço e garagem, havia também uma casa de bombas que mandava água do poço para o uso doméstico. Esta construção ficava junto ao rio Capivara, que atravessava a propriedade dividindo-a em duas partes. Na segunda, que se atingia passando por uma caprichada ponte particular, havia um estábulo, pasto e algumas cabeças de gado. Vacas holandesas, mansas, que eram orgulho do meu avô.
O terreno em si continha parreiras, plantação de aipim (que lá era, e ainda é, denominada mandioca), cana-de-açúcar e abacaxis. Um pomar com pés de figo, limão, maçãs deliciosas e laranjeiras de várias qualidades. Também hortaliças, legumes, temperos, flores e chás para todos os fins.
Entre tantas árvores frutíferas, uma em especial chamava a minha atenção. Era uma pereira enorme (talvez nem tanto, pois quando se é criança tudo parece maior...) e carregada de frutos atraentes. Depois da devida autorização para colher uma daquelas peras, encaminhei-me ao local. O meu avô deixava encostado na parede do galpão, um bambu comprido – devia ter uns quatro ou cinco metros – munido na extremidade mais fina de um saco em forma de “coador”, daqueles antigos, de pano, que era usado para coletar a fruta desejada. Guloso, escolhi a maior e de difícil alcance; fiquei na ponta dos pés, estiquei-me, cutuquei a escolhida até ela se soltar, mas para minha surpresa a fruta não coube no saco e começou a cair, trancando inicialmente em alguns pequenos galhos, o que me deu tempo de raciocinar. Soltei o bambu e me preparei para aparar o objeto dos meus desejos já antevendo o quanto estaria apetitosa. Lembro até hoje aquela pera descendo, de galho em galho, em câmara lenta; descendo, descendo... até ficar tudo escuro!

A pancada que levei no olho direito deve ter sido violenta, pois com o impacto caí de costas no chão e ali fiquei por algum tempo – talvez desmaiado. Não gritei, não chorei, não disse um ai. Sabia que a culpa do “acidente” era minha.
Quando cheguei de volta a casa com o olho fechado e muito inchado, sentindo muita dor, foi um alvoroço; algumas pessoas achando graça, outras preocupadas. Após a constatação de que nada mais grave havia acontecido, perguntaram-me o que eu ia fazer. Respondi somente:

           - Vou comer a minha pera. Inteirinha!!

A minha cidade-natal naquela época

domingo, 24 de setembro de 2017

A pilha (2017)


Em minha mesa
Há uma pilha de livros
Para serem lidos
Que por doação ou comprados
Não importa
Prova que tenho muitos
E queridos amigos

Meu problema, ultimamente
É a velocidade de leitura
Sou mais lento que o crescimento
Desta minha turma

Então, peço licença
E antes que a pilha
Alcance o teto
Ou esconda minha testa
Vou parar a escrita
E ler mais algumas linhas!


A pilha de livros

sábado, 26 de agosto de 2017

E assim tudo começou


          O menino loiro, magricela, tímido e assustado estava deslumbrado com a cidade-capital, tão diferente daquela onde nascera e com tantos descendentes de açorianos que, assim lhe parecia, o detestavam. Eram-lhe hostis e provocadores, instigando-o, por meio de acusações diversas, à revolta. Restavam uns poucos colegas, também sofrendo achaques semelhantes que se tornaram seus amigos. Hoje, com a experiência que a vida nos concede, entendemos que aqueles indivíduos estavam apenas demarcando seus territórios e se prevenindo contra quem julgavam ser um intruso. Alguém que poderia ocupar um espaço que era deles, por direito!
          Luta por direitos de igualdade à parte, o fato é que o menino ali estava, longe da terra natal, saudoso dos amiguinhos - primos, primas, coleguinhas de escola - e das coisas que lhe eram caras. Saudoso do "seu" Rio Capivara, da barca e das balsas no grande e profundo Rio Uruguai, da igrejinha matriz e do monte de serragem na "pracinha" (futuramente o seria; uma praça!) próximo da sua casa, onde tantas vezes brincou.
          A saudade era grande, sim, mas outras descobertas estavam acontecendo. O mar, em sua exuberância, os grandes edifícios com seus elevadores, os ônibus do tipo "bicudo" e "cara-chata" e, maravilha das maravilhas: Poder sentar no banco nº 1, ao lado do motorista - quem conseguia realizar essa proeza era invejado e respeitado, daí a disputa acirrada por esse privilégio. E íamos às aulas, felizes, à bordo dos veículos da "Transportes Coletivos São João".
          Todas essas novidades que lhe eram apresentadas nas ruas, no Instituto Estadual de Educação, na Biblioteca Pública (de onde se tornou assíduo frequentador) e até mesmo na TV, assistindo séries como: Tarzan, Bonanza, Viagem ao Fundo do Mar, Perdidos no Espaço, desenhos animados como o Manda-Chuva e Pepe-Legal e livros garimpados sempre por empréstimo, foram criando no menino uma capacidade de sonhar - acordado ou dormindo - cada vez maior, ao ponto de sofrer reprimendas dos pais ou professores.
          Sonhar! Sonhar é tudo de bom e ainda melhor quando se começa a por no papel os nossos sonhos. Assim é que em meados de 1972, com quatorze anos incompletos, o garoto tímido do oeste catarinense escreveu sua primeira poesia:

Paz e amor

Ney Santos/ 1972

A vida inteira eu andei
Por um mundo só de ódio
E de rancor

Mas agora eu parei e quero ter
Um mundo só prá mim
Onde haja paz e amor
E então encontrarei
A felicidade com que tanto eu sonhei

A vida é mesmo assim
Com amor e sem amor
Com ódio e até felicidade

Mas agora eu parei e quero ter
Um pouco de amor
E felicidade

          E o menino continuou a sonhar!   

domingo, 30 de julho de 2017

Festa animal (2017)


Disse a mãe:
- Falta algo. Quem virá dessa vez
Para que a nossa casa
Fique mais feliz?

Nela já habitavam pássaros:
Canários, sabiás e bem-te-vis
Veio então a tartaruga, elétrica
Que dançava rock
Vez por outra foxtrot

E recitava Fernando Pessoa
E Lêdo Ivo e dizia:
Seja você mesmo
Aonde você for
E sempre sorria!